No contexto da ditadura militar brasileira em 1966, Geraldo Sarno, então aos 28 anos, produziu o curta Auto de Vitória, que propõe uma reflexão incisiva a respeito das influências religiosas em questões políticas e sociais. O filme é ambientado na cidade natal do diretor, Poções, na Bahia, e inicia-se com a filmagem de um cortejo religioso onde um veículo militar transporta o fêmur do padre José de Anchieta, da Basílica de Aparecida até a Catedral da Sé, em São Paulo, destacando o simbolismo de uma fé que é manipulada por forças militares.
Após essa introdução, Sarno transita para uma representação cênica que reúne Lúcifer e Santanás em discussões sobre o futuro do país. Este aspecto teatral, baseado na obra Na Vila de Vitória ou Auto de São Maurício, de Anchieta, traz à tona a ideia de que as determinações divinas deixaram de ser fator preponderante, delegando aos demônios o papel de decisores.
A ironia do destino é que a obra, considerada desaparecida, teve seu reencontro em 2023 graças ao biógrafo de Sarno, Piero Sbragia, que encontrou o curta na Cinemateca Nacional. “O achado foi acidental. Eu estava à procura de informações sobre o filme e, após conversar com a diretora técnica Gabriela Sousa de Queiroz, conseguimos localizá-lo entre os filmes não restaurados”, relata Sbragia.
Ao assistir ao filme, Sbragia comentou sobre a capacidade de Sarno de conectar o aspecto documental e crítico em sua montagem. “É impressionante como o trabalho dialoga com a cultura popular e as constantes reflexões sobre religião e política. A montagem, inspirada nos princípios de Eisenstein, sugere múltiplas interpretações e retórica visual que permanece relevante no cenário brasileiro atual”, conclui o biógrafo.